Alamanaque de Observação Orgânica – Para tempos fatais: Você sabe o que existe 30 cm abaixo das solas dos seus pés?

Você sabe o que existe 30 cm abaixo das solas dos seus pés?

Você já se observou caminhando?  

Você presta atenção aos movimentos que seu corpo faz quando se desloca de um lugar ao outro da cidade a pé? 

Você observa  e registra as sensações táteis,  sente os cheiros que cruzam seu caminho ? Sente o contato do seu corpo com o ar?

Calça sapatos, chinelos, meias? 

Anda descalça?

Sente o contato das solas dos pés com o chão?

Sente as variações no terreno?  

Em que velocidade você normalmente caminha? 

Essa velocidade varia de acordo com o contexto? Você caminha olhando para frente, para os lados, pra baixo?

Enquanto caminha, sua cabeça está sobre o pescoço ? 

E seus olhos, estão em sua órbitas?

Você tropeça com frequência? 

Já caiu no meio da rua?

Conhece as variações de calçamentos, cascalhos, basaltos, asfalto,  os barrancos, areões, terrenos baldios, bueiros, becos, bibocas?

E como se orienta no espaço urbano?  

Costuma se perder? 

Ou você só anda pelos lugares que já conhece? 

Você evita percursos e territórios desconhecidos ?

Para chegar a regiões em que nunca esteve, você usa mapas, GPS, pede informações aos passantes?

Você sabe o que existe 30 cm abaixo das solas dos seus pés?

São essas  e outras corredeiras de perguntas de meio-fio que o Almanaque  de Observação Orgânica relança hoje como um convite atualizado a experimentarmos a cidade como prática ética e estética. E são essas mesmas perguntas e práticas que estão na base  do que veio a se tornar o Atelier de Observação Orgânica, cujos trabalhos se iniciam em março de 2016.

“Essa história começa ao rés do chão, com passos. São eles o número, mas um número que não constitui uma série. Não se pode contá-lo, porque cada uma de suas unidades é algo qualitativo: um estilo de apreensão táctil de apropriação cinésica. Sua agitação é um inumerável de singularidades. Os jogos dos passos moldam espaços. Tecem os lugares. Sob esse ponto de vista, as motricidades dos pedestres formam um desses “sistemas reais cuja existência faz efetivamente a cidade”, mas “não tem nenhum receptáculo físico(…)”

(CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.p. 176 )

O que hoje chamamos de Atelier de Observação Orgânica teve sua  origem no Curso das Inquietações  e na oficina Contar e Escutar no espaço urbano, coordenadas por mim, Ana Flávia Baldisserotto, no Atelier Livre Xico Stockinger da Prefeitura de Porto Alegre entre 2007 e 2015, consecutivamente. Acompanhados dos praticantes da errância urbana, leitores de Walter Benjamin, dos surrealistas, situacionistas, dos artistas e urbanistas caminhantes, abrimos espaços no corpo do pensamento colocando o corpo a mover-se no corpo da cidade.

“Os praticantes da cidade, como os errantes urbanos, realmente experimentam os espaços quando os percorrem, e assim lhe dão corpo, e vida, pela simples ação de percorrê-los. Uma experiência corporal, sensorial, não pode ser reduzida a um simples espetáculo, a uma simples imagem logotipo. A cidade deixa de ser um simples cenário no momento em que ela é vivida e experimentada. Ela ganha corpo a partir do momento que é praticada, se torna “outro” corpo. Para o errante urbano sua relação com a cidade seria da ordem da incorporação. Seria precisamente desta relação entre o corpo do cidadão e deste outro corpo urbano que poderia surgir uma outra forma de apreensão da cidade, uma outra forma de ação, através da experiência da errância – desorientada, lenta e incorporada – a ser realizada pelo urbanista errante, que se inspiraria de outros errantes urbanos e, em particular, das experiências realizadas pelos escritores e artistas errantes. 

(Paola Berenstein Jacques, em Corporografias Urbanas:https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.093/165)

E você, como experimenta a cidade em que vive? E como a transforma com seus passos, suas percepções e narrativas ?

Nos próximos fascículos da Almanaque vamos narrar alguns dos encontros que tivemos nos primeiros anos de caminhadas no entorno do Centro Municipal de Cultura e do que aprendemos com a sola dos pés.

Texto e imagens: Ana Flávia Baldisserotto